BRINCADEIRAS
INFANTIS E SUAS ORIGENS
Estudos
têm dificuldades para apontar origem das brincadeiras, que integram a cultura
popular do mesmo modo que a literatura oral, a música e a culinária.
A
pintura "Jogos Infantis", do flamengo Pieter Brueghel, de 1560, que
mostra 84 atividades lúdicas
Vamos
brincar então?
Observe
com atenção a imagem acima e encontre algumas brincadeiras que ainda são
utilizadas nos dias de hoje.
No
quadro “Jogos Infantis”, o flamengo Pieter Brueghel (1525?-1569) mostra cerca
de 250 personagens participando de 84 brincadeiras, em 1560. Grande parte delas
é conhecida ainda hoje. É o caso da maria-cadeira, em que duas crianças trançam
os braços para formar uma cadeira humana, usada para lançar um dos
companheiros, após o canto de um versinho: “Onde vai, Maria Cadeira?/ Vai à
casa do capitão,/ O capitão não está em casa,/ Joga Maria Cadeira no chão/ joga
Maria Cadeira no chão...”.
De
onde vêm as brincadeiras? Ninguém responde com certeza. Elas são universais e
fazem parte da cultura popular , como a literatura oral, a música, a culinária.
A
brincadeira pode ser considerada uma linguagem.
Sigmund
Freud (1856-1939) analisou o comportamento de um menino de 18 meses, que se divertia
com uma linha presa no carretel. A criança atirava o carretel para longe e
perto do berço _e dizia “vor” (perto) e “da” (longe). Para o psicanalista, o
jogo seria a vivência simbólica da presença e afastamento da mãe.
Melanie
Klein (1882-1960) e outros psicanalistas e psicólogos trabalharam com a
ludoterapia e atribuíram aos jogos e brincadeiras a função de elaborar
sentimentos e vivências. Eles divertem as crianças e as preparam para a
realidade.
Homero
fala de jogos infantis na “Odisséia”. Em túmulos de crianças do século 4 a.C.,
na Grécia, foram encontradas bonecas. Mas é impossível dar a palavra final
sobre a origem de uma brincadeira, pois ela ganha variantes e se transforma no
tempo e no espaço. As primeiras famílias européias que chegaram ao Brasil
durante a colonização trouxeram a boneca, o pião e o soldadinho. E também
monstros e gigantes, ogros e “trolls”, sereias e duendes, junto com canções de
ninar e contos de fada.
Os
africanos também contribuíram com criaturas que assustavam as crianças, como o
tutu-marambá, o quibungo e o nironga. Há referências de que as danças de
umbigada têm origem africana. Em 1928, Simões Lopes Neto escreveu que certas
danças teriam características indígenas e traços portugueses, como o
sapateado.“(...) Parecem haver resultado de uma combinação das danças dos
primitivos paulistas, mineiros e lagunenses, com as danças dos açoristas e dos
indígenas, mais a meia-canha e o pericon, danças que se usava nas repúblicas do
Prata, especialmente em Corrientes, Entre-Rios e Estado Oriental.”As danças
tinham nomes indígenas como anu e tatu, além de chimarrita, chico,
galinha-morta, e eram dançadas em bailes chamados fandangos que, a partir de
1840, foram sendo substituídos pelas danças vindas da Europa. Eram
divertimentos tanto das classes altas quanto das senzalas.Muitas dessas danças
passaram para as rodas infantis.
É
o caso da dança que acompanha a canção que diz “Folga, folga, minha gente,/ que
uma noite não é nada;/ se não dormires agora,/ dormirás de madrugada!”.
Tudo
isso foi sendo misturado ao Brasil que já existia antes de ser descoberto. No
imaginário dos índios, antes de eles sofrerem influência das missões
catequéticas, heróis reinavam sobre a terra. Além de Macunaíma e Maíra, mitos
mais difundidos, Nunes Pereira registrou, em 1940, o mito de Bahira, o herói
bem-humorado que roubou o fogo guardado no céu pelos urubus. Informam Orlando e
Claudio Villas Boas que as crianças indígenas brincam durante todo o dia,
especialmente com seus arquinhos e flechinhas. Têm, como se vê hoje entre as
crianças do país, brincadeiras de disputa.
Com
os curumins, as crianças africanas e europeias aprenderam a brincar de imitar
animais. Essa fusão cultural tem um paralelo no que acontece na mitologia. Em
1905, Max Schmidt apontou para o risco de se considerar originais algumas
correspondências míticas, como a assimilação de Tupã como Deus, explicada por
Camara Cascudo.
Um
exemplo da miscigenação cultural e da dificuldade de datar e estabelecer
origens pode ser observado nas interpretações sobre o conto jocoso “A Festa no
Céu”. Na Grécia, um aforismo dizia que animal rasteiro não pode querer voar.
Isso leva a crer que a história do sapo que foi a uma festa no céu escondido na
viola do urubu já tinha uma versão grega. A história foi registrada entre os
índios brasileiros, que provavelmente a conheceram por transmissão dos
europeus, e em povos africanos. Uma fábula africana de Angola que diz que a
tartaruga (que é sapo ou rã em variantes brasileiras e corresponde, nessa
história, à astuta raposa na Europa) é condenada à morte e suplica que não lhe
matem pela água, mas pelo fogo. Os inimigos resolvem afogar a tartaruga, e ela
se salva.A história também pode ter vindo do Oriente. O tema aparece no
“Panchatranta” (livro da mitologia indiana), que se vulgarizou na Espanha sob a
influência árabe. La Fontaine pode ter se baseado nessa obra para criar
fábulas.Para o estudioso Sílvio Romero, a cultura brasileira toma forma a
partir do século 17: “No século 16, pois, por uma lei de evolução que dá em resultado
antecederem as formas simples às mais compostas, as canções e cantos populares
das três raças ainda corriam desagregados, diferenciados. Nos séculos
seguintes, sobretudo no 17 e 18, é que se foram cruzando e aglutinando para
integrar-se à parte, produzindo o corpo de tradições do povo brasileiro”.João
Ribeiro escreveu no livro “O Folk-Lore” (1919) que as brincadeiras infantis
“são mensagens e recados de raça a raça, de povo a povo, de século a século,
sem sair da perene onda infantil que os leva a ignorados destinos”.O estudo das
variantes linguísticas das brincadeiras ajuda a estabelecer elos históricos.
Ribeiro faz um estudo da expansão da brincadeira joão-do-cabo. Ele conta que,
em 1919, o jogo vintém-queimado existia em Portugal e possessões, com vários
nomes. Na Espanha, o nome era joão-das-cadeinhas. Alberto de Faria recolheu em
Campinas (SP) a seguinte variante:_ Vintém queimado!_ Quem queimou?_ Pilão do
Carmo (Vilão do Cabo)._ Quer que se prenda?_ Prendido vá.”Após o diálogo, vem
outra série de versos, que autorizam a passagem de quem está na brincadeira:_
Passa, passa cavaleiro, pela porta do carneiro!_ Tem uma corda p’ra me
emprestar?_ Tenho; mas está suja._ De quê?_ De cuspe de galinha!_ Vamos
experimentar..._ Vamos!”Depois dessas perguntas e respostas, feitas por dois
meninos que estão nos extremos de uma cadeia de crianças de mãos dadas, todos
passam sob os braços em arco dos meninos de uma ponta (a porta do carneiro) à
outra; em seguida, os meninos dão um puxão para arrebentar a cadeia (a corda).
Todo mundo cai.Então, os dois meninos iniciais marcam no chão o inferno, o
purgatório e o céu.Um fica com a mão direita erguida e espalmada, para que os
outros batam nela com as cabeças, enquanto pulam. Quem consegue fazer isso vai
para o céu. Os perdedores vão para o purgatório ou inferno. As crianças gritam
para quem foi para o inferno:_ Coisa ruim, tem-tem_ Pra ganhar vintém!Ribeiro
interpreta que o nome vilão-do-cabo teria vindo do tratamento dado a um dos
meninos dos extremos da cadeia (na Espanha, frei João das Cadeinhas). Por sua
vez, o nome vintém-queimado seria corruptela de “veinte y un quemados”, da
parlenda castelhana da tradição quinhentista.
No
Nordeste do Brasil, a variante desse jogo é bolotinha-de-cabra e foi recolhida
por Julio C. Monteiro. No Ceará, essa brincadeira é conhecida também por
bolão-de-cabra, que tem semelhança sonora com “vilão”. No Sul do Brasil,
chama-se pilão-do-carmo. Na Bahia, é vilão-do-cabo mesmo. Se vilão resultou em
bolão, por que o nome bolotinha? João Ribeiro explica. Como o jogo na península
era também conhecido como juan-de-las-cadenetas (“cadeneta” é cadeia de “lavor
e trancelim”), “em Portugal o povo, por zombaria, transformou a expressão em
jam-da-caganeta desde o século 18”. Caganeta (ou caganita) designa o excremento
da cabra. E aí está a razão “que faz predominar no extremo norte o título de
bolão e bolotinha-de-cabra para um jogo que primitivamente se havia de chamar
vilão-do-cabo ou jam-da-caganeta”.E como vilão-do-cabo virou pilão-do-carmo? É
possível que vilão tenha sido substituído por peão, que acabou por se
transformar em pilão.A análise dos aspectos linguísticos demonstram o percurso
que o jogo fez por Portugal, Espanha e Brasil. A interpretação de uma versão
italiana (“tila-tila”) ajuda a descobrir por que um barulho, simulando um
tambor, foi incluído na versão brasileira. A mudança pode ter apenas relação
verbal. Explica João Ribeiro: “Quase todas as criações tradicionais devem suas
formas a verdadeiros equívocos e trocadilhos das palavras. Só a essência escapa
a essas erosões e metamorfoses da linguagem”. O curioso na parlenda
vilão-do-cabo, que deu na boca-de-forno, é que ela repete o tema da comida, que
sempre aparece nas brincadeiras infantis: o bolo, o pão e o forneiro. A palavra
final sobre essas interpretações, no entanto, ninguém a terá. O resultado
desses questionamentos é tão aberto como o do estudo da poesia.
Gostou?
Veja na íntegra: http://www1.folha.uol.com.br/fol/brasil500/brinca8.htm