Maternidade atrás das grades: adolescentes relatam rotina com
bebês dentro da Fundação Casa
Jovens ficam em setor exclusivo de unidade e são responsáveis
pelos cuidados com os filhos
Adolescentes grávidas e mães dividem espaço crianças e bebês
em unidade da Fundação Casa, na Mooca, zona leste
Adolescentes grávidas e mães dividem espaço crianças e bebês
em unidade da Fundação Casa, na Mooca, zona leste
Caroline Apple/ R7
Um grupo de adolescentes internas da Fundação Casa apresenta
uma adaptação de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, para comemorar
o Dia das Mães. Mas não é para suas mães que a apresentação é feita, e sim para
os seus filhos e para outras jovens mães e grávidas que cumprem medida socioeducativa
na Unidade Feminina de Internação Chiquinha Gonzaga, na Mooca, zona leste de
São Paulo.
As jovens brincam, as crianças participam, os funcionários se
emocionam e a peça termina de forma emblemática, com a reprodução da música “I
Will Survive”, de Gloria Gaynor, que significa, em tradução livre, “eu vou
sobreviver”. E, nesse caso, a situação
se trata de meninas que tentam sobreviver após cometer crimes como homicídios,
latrocínios e tráfico de drogas.
O serviço prestado às internas é diferente do serviço
oferecido pelo sistema penitenciário tradicional, que retira o bebê da mãe
quando ele completa seis meses. As jovens são inseridas no Pami (Programa de
Atendimento Maternal Infantil), no qual a mãe tem o direito de ficar com o
filho até o final do cumprimento da medida socioeducativa. De acordo com a
Fundação Casa, esse diferencial do programa tem tido reflexos positivos, como a
ressocialização e a diminuição dos casos de reincidência entre essas mães
precoces.
São onze meninas, entre 16 e 20 anos, que tiveram suas
infâncias roubadas, seja pelo crime ou pela carga pesada de responsabilidade
que a maternidade traz. E no setor exclusivo em que vivem no complexo não há
parentes para ajudar nos cuidados com o bebê, como alimentá-lo, dar banho,
vesti-lo, lavar roupinhas e outras tarefas que muitas mães adolescentes são
“poupadas” quando estão com a família, seja lá em qual contexto social ela
esteja inserida.
Mas a rotina puxada não é nada comparada à aflição do impacto
da apreensão da menor, momento que pode estar intimamente ligado ao nascimento
de uma mãe. Foi o que aconteceu com T.O.X., de 16 anos, que pariu sua filha
exatamente um dia após ser apreendida por tráfico de drogas. A pequena nasceu
prematura, o que T. acredita ter sido uma consequência do estresse. E assim a
jovem teve que se acostumar a ser interna e mãe ao mesmo tempo. A tatuagem de
duas lágrimas no canto do olho esquerdo da adolescente nunca tinha feito tanto
sentido.
— Foi um alívio eu saber que poderia ficar com a minha filha.
Achei que ficaria com ela por apenas seis meses e que teria que entregar para
minha tia ou sogra criar. Estou há dois meses e oito dias internada, que também
é a idade da minha filha.
Enquanto contava brevemente sua história, T. mexia em duas
cartas recém-chegadas. As palavras de conforto vinham de sua mãe, a quem não vê
há um ano — não por querer, mas pela sua tenra idade que nunca permitiu que a
adolescente fosse sozinha visitá-la na penitenciária em que está presa,
cumprindo a pena de seis anos também por tráfico de drogas.
— Meu irmão nunca ia, então eu também não podia ir sem a
presença de um responsável. Mas recebi essas cartas com uma “par” de coisas
boas, perguntando da netinha e me desejando feliz Dia das Mães.
O valor da família
Além de serem mães, existem outros pontos em comum entre as
adolescentes apreendidas. Uma consequência comum, de acordo com Ricarda Maria
de Jesus, psicóloga do Pami, é o novo olhar das jovens sobre o convívio
familiar.
— Elas passam a valorizar mais as atitudes da mãe, por
exemplo. Elas entendem que não eram chatices as cobranças, e sim cuidado. A
maternidade tem esse poder de humanização que também aproveitamos para fazer
com que elas reflitam em relação às vítimas e seus familiares, que foram
prejudicados com os atos infracionais que cometeram
F.S., de 18 anos, está grávida de nove meses. E, como toda
jovem, busca apoio em parentes, nesse caso, a mãe, que está a quilômetros de
distância, em uma cidade do Interior de SP. Quando questionada sobre o maior
problema que enfrenta com o enclausuramento, a jovem foi enfática: a distância
da família.
— Ter a minha filha longe da minha mãe me dói muito, mas não
mais do que ela ter que vir aqui me visitar em um lugar como esse. Me sinto
envergonhada, mas quando ela veio, de surpresa, eu fiquei muito feliz e
passamos a tarde inteira conversando.
A angústia de F. começou em março deste ano, mas já pode
estar no fim. A jovem foi apreendida três anos após o ato infracional que
cometeu. Na época, T. tinha um relacionamento amoroso com um homem que, na
ocasião, por ser maior, foi preso. Ela foi chamada para depor e liberada na
sequência. Foi então que tocou a vida longe do crime e conheceu o pai de sua
filha. Mas, para surpresa dela, acabou apreendida no final da gravidez.
Porém, por causa dessas particularidades, a direção da unidade
tenta a liberdade assistida da jovem, que apresentou bom comportamento durante
os anos que se passaram após o ato infracional.
— Não quero criar esperanças, mas se eu sair vou voltar para
casa da minha mãe.
A consequência positiva da renovação dos valores familiares
sofre um revés por causa do machismo. Enquanto os dias de visita nas unidades
masculinas são recheados de parentes, muitas adolescentes apreendidas sofrem
com a falta de apoio.
O diretor da casa, Ezeilton Rodrigues de Santana, conta que
existe uma cobrança social maior com as meninas, que acabam, muitas vezes,
abandonadas pela família.
— As jovens que não tem o apoio dos parentes são mais
indisciplinadas por causa da revolta que esse abandono causa. Essa atitude da
família compromete a ressocialização e a aumenta a chance de reincidência.
A maternidade e os estudos
A vida de mãe transforma em um grau a vida dessas meninas que
a reflexão sobre as atitudes que as levaram à privação da liberdade são
trabalhadas e sentidas de forma diferente daquelas jovens que não têm filhos.
Em geral, os estudos se tornam o maior projeto para o futuro delas e esses
aprendizados podem vir de várias maneiras.
Para aliviar as funções de mãe e estudante — no local, as
jovens completam os estudos básicos — a direção inseriu na grade de atividades
saídas para cinema e museus e aulas de teatro.
Um das atrizes principais da peça Alice No País das
Maravilhas é V.S.S., mãe da criança mais velha do Pami, o pequeno D., de um ano
e sete meses.
No “palco”, que era na verdade o chão de um dos pátios
coberto com uma fina camada de purpurina azul, V. foi uma das estrelas ao
interpretar o coelho pirado, amigo do Chapeleiro Maluco. Porém, ao falar com a
reportagem, a jovem apresentava um comportamento mais fechado e introspectivo.
Apesar da atuação digna de muitas palmas, a adolescente não cogita o teatro
como forma de vida e surpreende com a resposta.
— Quero cursar rádio e TV ou enologia, minha mãe gosta muito
de vinho e eu aprendi a gostar com ela.
A assistente social Gislene de Cássia Testi Silva, interrompe
a entrevista para elogia a dedicação de V..
— Ela é boa tudo que se propõe a fazer. Ela assimila muito
bem as coisas.
Nem todas têm tem um final feliz, mas as que conseguem tocar
a vida reconhecem a importância do período que passaram no Pami. Até hoje,
jovens que viveram na unidade ligam e té visitam os funcionários.
A psicóloga Ricarda relembra alguns casos.
— Uma jovem ligava para agradecer. Tem algumas que colocam os
filhos na linha e eles me chamam de "bó" [vó]. Certa vez uma das
internas veio me visitar aqui na porta da unidade para agradecer. É
gratificante.
http://noticias.r7.com/sao-paulo/maternidade-atras-das-grades-adolescentes-relatam-rotina-com-bebes-dentro-da-fundacao-casa-08052016